Ainda me lembro de um ritual que durou muitos anos em minha vida. Era o momento em que adentrava aquele ambiente quente e barulhento, levada pelas mãos de minha mãe. Devia ter aproximadamente uns dez anos, e só de pensar no calor do secador queimando minhas orelhas e nucas e no braço rijo e com força vigorosa que a cabeleireira impunha enquanto alisava os meus cabelos, me dava arrepios. Minha mãe nunca me obrigou: ” Ela quer, ela pede”.

A tortura durou muitos anos, e embora me incomodasse ao ponto de me autoimpedir de mergulhar numa piscina com várias crianças brincando num calor de 40 graus para não desmanchar o penteado – era autoimposto e uma atitude impiedosa que exerci sobre mim mesma até poucos anos atrás.

Hoje, com mais de trinta anos, penso que minha infância e adolescência teriam sido mais saudáveis e proveitosas se eu houvesse me libertado dessas convicções. Cresci vendo minha mãe esticando seus cabelos com a escova. Seja em casa ou no cabeleireiro, o barulho do secador era familiar pra mim. Me lembro de ouvir a mesma sempre reclamando do próprio cabelo (geneticamente de um cacheado idêntico ao meu, pasmem!!!). Ela sempre repetia o quanto ele era feio, rebelde, ou até mesmo ruim. E só se sentia bonita e transmitia sua autoestima quando os cabelos estavam devidamente alinhados.

Na escola também não era diferente. As meninas com cabelos lisos e compridos eram tidas como as bonitas, e por isso eram aceitas, respeitadas e bem tratadas, inclusive pelos professores. Esse era o ideal de beleza imposto no ambiente onde passava o maior número de horas do meu dia. Chegando em casa, a história se repetia.

Como era acostumada a esticar o próprio cabelo, minha mãe desconhecia as técnicas para cuidar adequadamente de um cabelo cacheado. Morávamos numa cidade do interior, e como naquela época não havia internet, o máximo que chegava de informação era através de revistas femininas. Algumas destas ela assinava, mas acredito que nunca leu esta parte.

Na adolescência, cheguei a me deparar com algumas Caprichos que orientavam quanto aos melhores tratamentos, produtos e formas de arrumar o cabelo cacheado. A maioria deles não existia na minha cidade, e se conseguia encontrar alguém para comprar na capital, o valor era tão exorbitante, que rapidamente era boicotada. Mesmo assim, tentei com o que pude me assumir com meus cabelos reais. Descobri um creme que podia ser deixado no cabelo e ajudava a modelar, o que contribuiu para que eu me aceitasse por um bom período. Entretanto, um cabelo cacheado sem um corte adequado pode se tornar um eterno desassossego para quem era influenciada pela mídia, a eterna protetora dos fios alinhados, como eu era naquele tempo. Isto,por conta do frizz e do volume adicional, que nem sempre é aceito. No meu caso: nunca era bem vindo. Pois bem, na minha cidade também não havia um cabeleireiro que soubesse cortar o meu tipo de cabelo, que pasmem, é o mais predominante entre as brasileiras. O resultado é que era me imposto um corte reto, como o feito em cabelos lisos, que obviamente, não funcionava.

Além de passar por poucas e boas com o cabelo, que cismava em acordar espetado justamente quando eu acordava atrasada para ir a escola, sofrer preconceito, me sentir rejeitada e com a autoestima baixa e ter feito todo tipo de tratamento caseiro possível ( inclusive cheguei a misturar abacate entre outras frutas e tacar na cabeleira), finalmente cedi às forças externas e voltei para a tormenta da escova. Isso significava horas de sono perdidas para domar a juba e um rombo financeiro em minha mesada, que ia praticamente toda no cabeleireiro, lembrando que naquela época também não existia chapinha. Com a invenção desta, me tornei mais uma adepta, assim como do alisamento definitivo e logo mais a progressiva. Esta última, a princípio, conferia um liso volumoso e menos artificial que a primeira. Mas com anos de prática e torturas no couro cabeludo e sistema respiratório, que sofria com a forte química, decidi me libertar. Munida pelas informações necessárias encontradas pela internet, aboli definitivamente as químicas, investi num bom corte e produtos menos agressivos, hoje em dia disponíveis em grandes volumes e marcas. E, finalmente: me assumi. E o melhor: hoje adoro o volume do meu cabelo, que tanto me incomodava há tempos atrás e me fazia lembrar da célebre frase materna: “prende esse cabelo, menina!”. Quando me lembro destas palavras ecoando em meus ouvidos, respondo automaticamente em pensamento: não prendo não! Inclusive, vou chacoalhar mais um pouco pra ganhar um volume ainda mais imponente!

Porém, não pensem que este foi o fim de uma jornada. O preconceito continuou. Mesmo com os cachos bem cuidados e encaixados em sua forma mais harmônica, seja pelo corte, seja pelos produtos especiais, continuei sentindo de perto a rejeição, principalmente dentro de minha própria família. Cheguei a ouvir que estava ‘relaxada’, que não tinha mais vaidade entre outros desaforos. Uma vez minha irmã me falou que o namorado dela havia feito um comentário sobre minhas madeixas: Como o cabelo da Sabrinah é enroladinho, né?. E ela disse isso em tom de ofensa, como se ele tivesse apontado um defeito em mim. Repare no diminuitivo ‘inho’ usado para ressaltar essa minha característica peculiar. Detalhe: o cabelo dela também não é liso, e sim, modelado no secador. Uma amiga muito próxima não se conformou: – Era muito mais bonito liso! No trabalho, cheguei a ouvir da moça da copa: – O seu cabelo não é feio! Não acho ele feio! Ele não é feio!- como se estivesse me fazendo um elogio. Rapidamente deduzi que o comentário veio do que ela escutou nos bastidores do cafezinho.

Embora o peso do preconceito sempre tenha me incomodado, agora o sinto de forma diferenciada. É como se o peso da idade e a experiência de muitos anos de tortura, me trouxesse a verdade que sempre procurei: sim, era possível ser feliz sendo eu mesma. E meu cabelo era bonito sim. Da sua forma, nos seus cachos espiralados, que só queriam coexistir e sentir o vento fazer o seu trabalho de secagem numa forma de carinho. Agora percebo que não há coisa melhor que sair de casa com os cabelos aos ventos, livre de qualquer culpa e pronta para passar por cima de qualquer nariz torto. E não, eu não preciso pedir autorização para os vigilantes do padrão vigente para ser como sou. Só lamento pela minha irmã mais nova, que ainda segue os mesmos passos que eu seguia no passado, mas tapa os ouvidos para qualquer verdade, pois assim como minha mãe, e eu mesma há poucos anos atrás, isso sem contar a maioria das mulheres, sofremos uma lavagem cerebral da mídia e seu cruel padrão de beleza, padrão do qual, atualmente sou fugitiva.

  1. uau! que historia…olha, eu acho que somos filhos de uma geração que ainda estava muito apegada ao que os outros diriam, principalmente em cidades menores… sempre fui “a” esquisita, porque não estava nem ai pra opinião dos outros, eu queria mesmo era ser diferente. isso me livrou de muito sofrimento, mas sei de muitas meninas que não lidavam das coisas como eu… nunca esqueço uma noite que sai com uma amiga, e a mãe dela fez ela fazer a sobrancelha antes de sair, porque senão “ela não arrumaria nenhum namorado” fora que essa mesma menina fez lipo aos 15 anos por causa do culote… acho isso triste, porque os filhos sofrem, e no fundo, é tudo preconceito… que bom que tu assumiu os cachos, e te desejo muita felicidade com eles. se amar muito é o mais importante, se sentir bem exatamente como a gente é, se sentir confortavel com o corpo e todo o resto, pra mim, é o segredo da felicidade. amei teu blog, vou fuçando pra conhecer, beijos

  2. Parabéns pelo blog gosto demais de ler suas entrevistas e matérias elas me ajudam a ser feliz com meu cabelo, eu sinto pena das pessoas que não aceitam os diferentes que seguem padrões estúpidos de pessoas limitadas e infelizes. Beijos

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